quinta-feira, outubro 06, 2005

“Alice” de Marco Martins

Marco Martins parte de uma ideia simples, um homem que procura a sua filha desaparecida, e transforma-a numa primeira obra repleta de complexidade emocional.
Reduzindo o filme aos nosso olhos poderiamos dizer que se trata de uma simples procura, uma angustiante procura de uma pessoa que não se encontra presente e que foi retirada à sua família... mas isso seria e acabaria por ser excessivamente redutor.
“Alice” é acima de tudo um alimento de espírito, é uma cruel obsessão, é um destruir constante e vagaroso.

Mário (Nuno Lopes) é um pai obsecado em recuperar a sua filha, ao contrário de Luísa (Beatriz Batarda), a mãe caída no vazio da ausência da sua filha.
Seria lógico seguir ou a relação familiar, a vivência deste casal e os seus problemas, ou como seria normal, tomar partido pelo lado maternal, aquele que supostamente é o mais frágil e que mais sofre com os filhos. Existe um curioso diálogo em que isso é referido, mas Marco Martins, claramente pretende mostrar o sofrimento de um pai, daquele que muitas vezes é dito como o mais forte, mas que em boa verdade e neste caso preciso, guarda no seu interior um sofrimento enorme alimentado por uma esperança desmedida em encontrar a sua filha.
Mas falar em esperança é algo que não parece correcto. Não se trata de esperança, é mesmo uma angústia desmedida, uma obsessão que vai retardando um sofrimento carnal.

Mário deambula por uma Lisboa negra e fria, cobrindo-a de câmaras de filmar e “flyers”, tentando descobrir a sua filha ou encontrar alguém que o ajudo a encher o vazio da sua vida, mas pelo contrário acaba por se ver rodeado por pessoas tão sozinhas quanto ele, que por momentos em nada ajudam e apenas o afundam mais, como de um simples destroço se tratasse.
E na verdade é um destroço que Mário é... um sublime Nuno Lopes, que reduz a sua personagem a um simples resto escuro da condição humana, numa contenção emocional, numa angustia interior que despe a sua personagem aos nosso olhos, sem nunca mostrar um mero sinal de explosão... mas que em boa verda parece inevitável. Assim como Beatriz Batarda, ligeiramente afastada do centro da narração, mas sempre ferida, sempre perdida e profundamente derrotada.

Suberba mesmo acaba por ser a manipulação do som/imagem, basta para isso recordar a primeira sequência exterior, onde o ambiente em redor é nada mais nada menos que uma simples hipérbole dos sentimentos filmados, começando desde logo a apertar o estômago do espectador.
É uma visão real aquela que nos oferece Marco Martins, apartir de uma excelente construção narrativa, por momentos negro, por outros momentos angustiante, “Alice” tem o condão de a cada momento e a cada frame se tornar cada vez mais denso e cada vez mais interativo, conseguindo em grande parte da sua evolução manter o espectador ao lado da furiosa e angustiosa procura de Mário.

“Alice” é acima de tudo uma obra introspectiva, que anula o supérfulo e apenas condensa o que realmente é relevante, afinal de contas não é realmente Alice que interessa aqui, não é Alice enquanto corpo presente, é sim Alice enquanto espaço vazio na vida do seu pai.

Repleto de uma sensibilidade incontornável, suportada pela fabulosa composição musical de Bernardo Sassetti, “Alice” é uma primeira obra crua, carregada de uma frieza por momentos insuportável, e acima de tudo muito longe do que é normal no cinema português.

“Alice” é em boa verdade um vazio...o vazio angustiante do que não se encontra.

NeTo - 9/10

13 Comments:

At 3:10 da tarde, Blogger gonn1000 said...

Parece bastante promissor, tenciono vê-lo em breve...

 
At 3:24 da tarde, Blogger MPB said...

Caro Gonçalo: a meu ver promissor é pouco. Durante a noite foi impossivel o filme nao voltar à conversa. Mexe connosco.

Cumps

 
At 3:40 da tarde, Blogger Coutinho77 said...

Estou mais que curioso para ver este filme. Espero que levante o patamar de qualidade do cinema português.
Boa critica.
Abraço!

 
At 4:52 da tarde, Blogger brain-mixer said...

Se tivesse uma grande banda sonora e uma montagem um pouco mais atrevida... Eu até o ia ver ao cinema. Mas não acredito que vá por aí, síndrome de Oliveira?

 
At 5:02 da tarde, Blogger MPB said...

Coutinho77: Thanks ;) Acredito que o "patamar de qualidade" subiu bastante e pode continuar a subir, basta esperar por ODETE ;)

Brain-mixer: A banda sonora é eficaz e tocante e acima de tudo pertinente, Sassetti tem muitas provas dadas na composição. Quanto à montagem e ritmo, dado ao tema que a história aborda, não se espera cortes a cada 5 frames :D mas com tanta intensidade nem tens tempo para pensar na montagem ;)

Cumprimentos aos dois.

 
At 12:50 da tarde, Anonymous Anónimo said...

o melhor filme português desde "noite escura". 5 estrelas. tocante, emocionante, e com uma banda-sonora espectacular de sasseti. see ya :)

 
At 2:03 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Adorei ler a tua análise e fiquei ainda mais interessado em ver o filme. Mas...qual a classificação que lhe dás?

A propósito, não tens passado pelo meu blog :(.

Cumps. cinéfilos

 
At 10:10 da manhã, Blogger David Santos said...

és a primeira pessoa que fala e dá nota tão alta ao filme.

fiquei com enorme vontade de ir ver..

mas tb já vi o contrario.
com mais vontade fiquei.
É preciso dar força ao cinema portugues né?
lá vou eu...

 
At 10:21 da manhã, Blogger MPB said...

s0lo : A classificação só foi feita após o revisionamento.

David : Por muito que se diga que o filme é lento e coisa e tal, ninguém pode retirar que o filme tem grandes momentos, e que é uma obra singular no panorama actual do nosso cinema. E de qq maneira, é com publico nas salas que o cinema português cresce, e não apenas a falar e a dizer que falta cinema para o publico.

Cumps

 
At 8:54 da manhã, Blogger brain-mixer said...

O filme de Leonel Vieira "A Selva" também teve uma situação dessas: Grande aparato técnico, gruas, cinemascope, sei lá... E depois no cinema falha redondamente! Não há por aí um Spike Jonze tuga?

 
At 8:36 da tarde, Blogger MPB said...

Brain: Pois, mas comparar o aparato tecnico de A SELVA e até de UM TIRO NO ESCURO, ambos de Leonel Vieira, com os recursos utilizados por Marco Martins é algo exagerado. Não há recursos a mais neste filme, até muita contenção, um tripé e uma camara de filmar... penso que nem steady cam tiveram :D
É m filme que vale mais pelo argumento e pelo tratamento tecnico... e nao pelos meios nem pelo dinheiro gasto na produção ;)

Cumps

 
At 11:52 da tarde, Blogger Juom said...

Junto a minha voz à de todos os fãs de Alice. Continuo com o filme bem presente, a recordar constantemente algumas cenas, alguns planos. Tem excelentes interpretações e um ritmo próprio, mas eficaz e interessante. Merece que uma oportunidade.

Curiosamente, já que se falou em Leonel Vieira, por muito que o seu cinema esteja quase num polo oposto ao deste Alice, devo dizer que tenho para mim A Sombra dos Abutres como outro exemplo de excelente cinema que se pode fazer em Portugal.

 
At 2:33 da tarde, Anonymous Anónimo said...

um filme tocante. uma obra de arte impressionante.
muito bom! mas tb perturbador.

o final, por todo o filme até lá, deixa-nos um nó no coração...

 

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