domingo, agosto 13, 2006

“Miami Vice” de Michael Mann (2006)



Para compor um comentário a “Miami Vice” de Michael Mann, há que tocar em alguns pontos cruciais, o contexto histórico em que nasce a série televisiva e em que nasce a adaptação cinematográfica, o contexto cinematográfico e tecnico, e claro tratar-se de Michael Mann o realizador, sendo que estes dois ultimos aspectos estão claramente de mãos dadas.

O risco da adaptação cinematográfica é muitas vezes as redeas presas a um naturalismo frio que por tantas vezes invade o nosso ecran, a linguagem televisiva que cada vez mais domina o panorama do “publico médio”, e tudo o de redutor que essas imagens expressam uma irrisão quando se fala ou tenta alcançar o real, a adaptação cinematográfica “Miami Vice” de Michael Mann caminha no sentido oposto.
Estavamos nos meados dos anos 80, na televisão surgia “Miami Vice”, produzido por Michael Mann, poderiamos dizer que se tratava de o olhar natural sobre uma Miami turistica, o paraíso, onde as festas as mulheres de bikini e o sol invadiam cada segundo da série. Lembro que estavamos em meados dos anos 80, agora na segunda metade da primeira década do século XXI, Michael Mann adapta a série ao cinema, e será adapta a palavra correcta?

De forma alguma; da série ficam apenas os nomes e o conceito de dois polícias a lutarem contra o crime, por que apartir daqui Mann desconstroi, reinventa e experimenta. Experimenta o seu cinema (ou uma nova vaga do cinema em geral) tenta transportar-se para algo mais profundo do que aquilo que vem alcançando e procurando desde “Ali”, já que “Heat-Cidade sobre pressão” deve ser deixado descansado no altar de obras memoraveis dos anos 90, sendo que o cinema de Mann já implode nesse momento. Digo implode porque Mann, qual expressionista filma a sua realidade apartir da sua sensibilidade, parte da sua subjectividade para alcançar uma objectividade extrema. Tudo isto parte do autor e das tecnicas, não será ao acaso o surgimento do vídeo de alta definição (HDV/CAM), tenha impulsionado Mann para um novo patamar, para um novo espaço físico e psicológico, a noite. Em “Ali” já havia feito a pequena experiência de filmar algumas cenas durante a noite, apoiado no Vídeo, em “Colateral” a importância do vídeo é clara, transformando, a cidade de Los Angeles, mais que um mero espaço, num componente dramático. Agora em “Miami Vice” o choque tecnológico é extremo, a tecnica está dominada, podendo ir ainda mais longe no extremismo, mas o essencial está conseguido, desconstruir a “Miami Vice” turistica e luminosa da série de TV, transformando-a numa realidade obscura, suja e seca, que não será nada mais a realidade retratada dos Estados Unidos aos olhos e ao cuidado da novas convicções sensiveis que Mann trouxe ao cinema.

Será fácil colocar a sensibilidade dramática de Mann em causa especialmente neste “Miami Vice”. No cinema actual ainda vivemos agarrados a formas e convicções existentes há mais de 40 anos e poucos são aqueles que agarram com mão dura nas convicções clássicas do cinema e as reinventam, as tentar contornar e modelar de forma correcta, sendo que para isso tenham de as conhecer ao detalhe. Pergunto, alguém faz filmes de acção (drama) como Michael Mann? Porque não filma como Michael Bay? Mann tem a sua formação na Europa rodeado por cinema europeu, e filma na América, como nenhum Americano pode filmar, tem no seu olhar rude e seco sobre uma sociedade, tem uma abordagem tecnica crua e energica, qual Novelle Vagueano e não filma nada mais que a objectividade do real, sempre aliado ao lirismo, qual neo-realista.

“Miami Vice” é o caso extremo da sua filmografia, utilizando a tecnologia de topo da Viper FilmStream™ (http://www.thomsongrassvalley.com/products/cameras/viper/) , Mann explora, formas, movimentos, ritmos e dramáticos. Colocar em causa o argumento de “Miami Vice”, pode ser um erro, é certo que o argumento não vive por si só, mas vive antes de todo o conteudo formal que o envolve e que Mann tão bem explora, mas o que é mais que certo é que o argumento é o necessário para consolidar as duas personagens principais, sendo toda a envolvencia tecnica que acrescenta o que supostamente falta em palavras no argumento.
Repare-se que a noite desde “Colateral” ganha uma nova importância e uma nova expressão. Lembram-se da série televisiva? O sol de Miami, os sorrisos dos dois protagonistas, os fatos brancos, os corpos em bikini? Na Miami Vice de Mann tudo desaparece, a noite dura e crua, o olhar massacrado dos protagonistas, os corpos vestidos de escuro, Miami é agora uma cidade sombria, uma cidade fantasma, que tal como acontece na América geral o choque cultural é o motivo para o conflito.

Outra questão, existe realmente Miami? Miami é o ponto de partida e o ponto de chegada de uma viagem que atravessa América do norte, América do sul e Central.
O que sobra da série televisiva? Nem o genérico, Miami Vice está mais cruel que nunca... ou será real?
Detective James 'Sonny' Crockett e Detective Ricardo Tubbs, Collin Farrel e Jamie Foxx, substituem Don Johnson e Philip Michael Thomas, e em boa verdade esqueçam Johnson e Thomas, pois Farrel é impressionante na sua presença corporal e vocal, com um olhar pesado e um estilo incomparável e Jamie Foxx no papel de “Rico”, se quisermos, aquele que na série de televisão era o mais contido emocionalmente e divertido no seu dia a dia, é agora para Foxx um homem duro, integro e extremamente agressivo... o que mudou? Mudou a América, mudou o mundo.

Mas o que ressalta de toda esta Miami é mesmo Michael Mann, podem-no acusar de ter feito um mero exercício de estilo, podem dizer que esqueceu o conteudo, mas não será parte do seu estilo parte do conteudo que falta? Ouvi recentemente na televisão o Sr. Mário Augusto (SIC), dizer que Mann utilizou câmara ao ombro, que é uma tecnica muito proxima da televisão... mas porque temos de ouvir tamanha barbaridade? A câmara de Mann é a rudeza que faltam as palavras é o escurecer de um olhar, é o “fuck you all” que não ouvimos, lembrem-se de como Mann filma as cenas de amor, ou como filma a personagem “Rico” quando este prepara um dos salvamentos mais importantes da sua vida, para quê as palavras, se se domina uma tecnica que poucos dominam, pelo menos da forma e com o objectivo que Mann quer. Michael Mann caminha a passos largos do realismo extremo, seja na sua imagem e componente plástica, seja no excelente trabalho de som, que no final do filme é absolutamente cruel, assim como toda a imagem, é a conjugação sublime.

Querem filmes bonitos, querem regras, querem choro e palavrinhas mansas, querem movimentos de câmara suaves? Então esqueçam, “Miami Vice” é o maior passo de Mann em direcção ao “seu” realismo, à sua abstracção objectiva e de bonito tem muito pouco... mas em boa verdade, é Mann um autor ou não? É isto que faz do cinema algo tão especial ou não? Quero lá saber dos sentimentos que estão no papel do argumento, quero é ver essas emoções na tela....
“Miami Vice” é incomparável com qualquer outro objecto, nem que seja pelo simples facto de dar um importante passo em direcção ao cinema digital que tem neste proximo ano um momento decisivo, e não é por ser mais “fácil”, ou mais “barato”, ou mais criativo como por aí se diz... é por ser diferente.
Tal como as taglines dos posters do filme, “Miami Vice” é um objecto sem regras nem leis.


NeTo - 10/10

P.S. - Ana Cristina Oliveira tem uma pequena participação no filme, onde no inicio dialoga com Colin Farrel, onde se apresenta como sendo de Lisboa, Portugal. Curiosidade será o facto da actriz actualmente fazer parte do elenco de dois filmes em exibição nos EUA, "Miami Vice" e "Two Drifters - ODETE".

7 Comments:

At 1:26 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Uma crítica não tem de ser tão extensa. Ninguém vai perder tempo para a ler. Tenta ser mais conciso.

 
At 1:54 da tarde, Blogger MPB said...

João, não é uma crítica, não gosto do termo é um comentário ou analise concisa. Acredita que é conciso, poderia ser muito mais extensa, e ate acho que se fosse mais curta faltariam alguns elementos e cairia no erro em que muitos caem de resumir uma "analise" do filme a uma sinopse e a duas linhas de opinião. Faço isto por gosto, para partilhar ideias e quanto a ninguém ler tenho pena mas é isto que sinto que devia ter escrito.

Cumprimentos e obrigado pelo comentário

 
At 6:32 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Miami Vice é talvez um dos filmes mais importantes desta decada, as pessoas nao tem noção porque passa por blockbuster de verão ainda por cima falhado dado as receitas. defino o hd de michael mann em dois adjectivos: estranho e fabuloso. é um passo gigante em frente no digital, um passo que correria muito mal se nao fosse o michael mann a faze-lo. é um filme brilhante que reflecte que não é na pelicula ou na mini dv que esta a diferença, a diferença está na profundidade de cadarealizador/ autor, e antes de tudo quando este é autor. Miami vice tem uma dureza nele, tão palpavel nas noites surreais e na grande angular que envolve o espectador na totalidade da personagem. Colin Farrell e Jamie Foxx são a cara desta enorme reviravolta, neste passo gigantesco. Michael Mann ironicamente na sua meia idade tornou-se o realizador do futuro.

Desculpem o comentário demasiado longo, sei que ninguem vai ler, já que tenho que ser mais concisa. dizer que o filme é giro e por muitas fotos. mas isso sao maneiras não leis, quie parece que tem que ser seguidas religiosamente. fala-se o que se quiser quanto quiser. Um blog é um meio de expressão.
e ha tanto mais que se podia dizer sobre este fenomeno, mas pronto nao podemos cansar os " leitores".

 
At 10:54 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Muito bem filmado, boa fotografia, mas acho que falhou alguma coisa em termos de argumento e química das personagens.
Li a tua opinião e sei que discordas, mas respeito tudo o que disseste :).

Cumps.

 
At 4:35 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Aqui ficam as minhas palavras sobre esta pérola:

No tempo em que Rohmer e Rivette eram ainda somente analistas, ou seja, pelos anos 50, na pré Nouvelle Vague, na pré modernidade do cinema, diziam eles que na história do cinema havia somente dois cineastas que transformaram a forma no tema principal das suas obras, que ao a elevarem a proporções nunca antes imaginadas reverteram todos os pressupostos – o trabalho sobre as formas transformava-se no conteúdo.
Falavam de Eisenstein e de Hitchcock.

A propósito de Miami Vice de Michael Mann têm-se escrito coisas parecidas, têm-se exaltado a forma, diz-se que é cinema futurista, obra-prima das novas técnicas visuais e sonoras, e é impossível não concordar.
Diz-se ainda – e neste ponto chega-se ainda mais perto das formulações de Rohmer e Rivette – que Miami Vice é de tal maneira trabalhado, estilizado na sua forma, na violência da forma claro está, e que é precisamente esta violentação executada através dos mais modernos materiais, dos instrumentos nunca antes aplicados ao cinema que nasce uma matéria em que a «malaise» e os medos das sociedades modernas aparecem sobre o ecrã a uma luz nunca antes experimentada – por isso a revolução, a revelação.
E neste ponto também nada a objectar, é das coisas mais fascinantes de facto.

Mas acontece que se fosse só por isso que o filme fosse extraordinário – e não seria pouco – poderia surgir o fantasma da desconfiança.
Que desconfiança? É que Mann sempre foi um cineasta que dividiu opiniões, mais do que isso sempre gerou mal entendidos, os seus detractores proclamam precisamente o atrás referido, que em Mann, cineasta dito obsessivo, só a técnica interessa, só a utilização do novo e do revolucionário, desprezando os actores e a substancia – «style over substance» gritam algumas vozes.
E mesmo nas suas obras máximas essas vozes defenderam a sua – em “heat”, o seu filme mais poético, lancinante, verdadeiro épico das crenças e das obsessões, filmada com uma precisão tal que paradoxalmente se libertava de todos os pressupostos e se transformava em algo, apetece dizer «Antonioniano», deste modo reforçando a importância da cidade e da noite na obra do cineasta, a cidade como revelação da contemporaneidade e do ar do tempo, a noite como reflexo das suas sombras, ambiguidades e solidões.
Neste fresco trágico moderno muito viram no duelo de monstros entre Pacino e De Niro como um pretexto para Mann elaborar um jogo banal e gratuito de inovação formal.
O mesmo se passaria pelo menos em duas grandes obras seguintes.
Em “The Insider” o que foi uma cruzada pelo liberalismo jornalístico, muito anos 70 – funcionando a questão do tabaco quase como um «mcguffin» – pelo direito á verdade, a toda a verdade, aproximando-se o cinema do americano do radicalismo de Lang ou de Chabrol no que a esta questão diz respeito, com um Russel Crowe frágil e comovente – a rimar com o Farrel de Miami Vice – as mesmas vozes falaram de filme moralista em que a quase invenção de uma linguagem e estética insólita aplicada ás flutuações psicológicas dos protagonistas foi vista como simples e fútil pirueta estilística.
Passaram uns anos e Mann, o poeta da cidade, apostou em filmar a história de um assassino que se passeia por Los Angeles dentro de um táxi com a função de terminar algumas vitimas, com as mais recentes câmaras de alta definição, para deste modo conseguir um tal nível de ultra realismo e de sujidade que servissem o pretexto e reforçasse o universo e a obsessão de Mann pela grande Cidade.
Apareceu então o epíteto de cinema de futuro, do formalismo aplicado a um vilão que proclamava filosofia existencial, de um final á “Terminator”, de inovação injustificada e pueril – mas o que passou ao lado foi outra vez uma visão assustadoramente real e complexa sobre o Grande, grande cidade e grande escuridão – grande ambiguidade sobretudo.
E aqui como em Miami Vice o ultra realismo surge investido de um assustador paradoxo – por um lado quer-nos fazer ver nitidamente toda uma nova realidade, por outro lado esse nível de nitidez é tal, já não há a subtileza da película, que o que vemos já é outra coisa, já é pura abstracção sobre uma tela que é o ecrã, pintura do real, difusa e anti maniqueísta.
Voltando atrás, Miami Vice é inquestionavelmente um filme de inovações, uma coisa absolutamente nova, em estado nascente, e o trabalho sobre a forma já valeria por si.

Mas não dá para deitar fora o resto e dizer que Mann é o mais brilhante cineasta de acção contemporâneo, o maior estilista sobre superfícies, espécie de Don Siegel do século XXI ou coisa parecida – é redutor.
È que por dentro ou a par do que nunca antes foi visto existe um duplo movimento que importa reter e que é das coisas mais emocionantes que o cinema, americano ou não, captou ultimamente: por um lado os dois agentes vagueiam numa utopia diria também ela moderna, acreditando sucessivamente que conseguirão lutar contra algo que os ultrapassa, que os esmaga.
No sentido contrário não podem dispensar obviamente o seu lado humano, as relações e as paixões.
E é nesta dialéctica que o filme se engrandece e se torna comovedor, se por um lado o “eu” dos agentes têm a necessidade de continuar a cruzada, a jogar contra isto está a necessidade dos afectos.
São movimentos opostos, passíveis de se autodestruírem, e é por eles que nascem das coisas mais vibrantes, de puro êxtase a um tempo carnal e sensorial, os olhares magoados e desesperados que transportam a consciência das coisas que não duram
As cenas de sexo estão imbuídas desta consciencialização tranquila e desesperante que irá desembocar no mais indefinido dos finais.
Existe em todo o filme uma angustiante percepção entre o provisório e o absoluto que faz com que os corpos, os rostos e os olhares, num movimento contínuo ou aleatório entre ambos escorreguem constantemente para um limbo existencial.
E são estes mesmos corpos que se movimentam e materializam por assim dizer uma espécie de «thriller geográfico» em que esses mesmos corpos já não pertencem a lado algum, e ao mesmo tempo a todos os lados, assemelhando-se muitas vezes a fantasmas, espectros atrás de uma quimera, por todas as direcções e fronteiras.
Grande reflexão sobre circulações – dos corpos, da droga, do dinheiro…
E a jogar com isto Mann inventa, apetece gritar, uma dialéctica musical nova, no sentido Eisensteiniano, mas sobre a musica literalmente – reparemos nas cenas de dança entre Farrel e Gong Li, em Havana, começam com a música cubana que logo de repente é cortada para o mais moderno dos sons, é a evidencia de que naqueles corpos já não existem limites, geográficos, físicos – pertencem a uma crença.

E Mann é um grande autor, apetece em jeito provocatório dizer que se não fosse Godard, Truffaut e os outros, Hitchcock ou Hawks provavelmente teriam demorado muito tempo a serem reconhecidos como mestres – apetece fazer o mesmo em relação a Mann.

Abraços!

José Miguel Oliveira


joseoliveira_braga@hotmail.com

 
At 3:39 da manhã, Blogger Rui Barroso said...

Michael Mann filma a solidão... mais do que a solidão, o vazio que é trazido pela falta de esperança como ninguém actualmente. E se este é um dos aspectos emocionais que, a mim, mais me marcam no seu cinema, por outro lado, o meu lado cinéfilo (enorme!) faz-me dizer que "um morto pode andar dias e dias numa carruagem de metro sem que ninguém dê por isso". Que é como quem diz - digo-o eu - que Michael Mann está a reinventar o cinema e poucos parecem estar a dar por isso, o que, se virmos bem, infelizmente não é de espantar. Como aconteceu com tantos, talvez quando morrer venha a ser reconhecido.

Zona dos P.S.'s
P.S.1 - Gostei muito do vosso blog! Segui o link no Cinema 2000 e, ainda bem que o fiz. Voltarei assiduamente!
P.S.2 - Sobre tempos perdidos. Algo com que realmente se perde tempo: ouvir o Sr. Mário Augusto.
Algo com que nunca se perde tempo: fazer o que se gosta!

Abraços!

 
At 5:36 da tarde, Blogger David Santos said...

vem no caminho do colateral.

Mas este vai mas longe visualmente e fica muito curto e na minha opinião demasiadamente curto em comparação com o anterior em termos de historia, argumento, as interpretações são mecanizadas.

o que é pena

 

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