terça-feira, dezembro 27, 2005

ENTRE AS IMAGENS

“Rashomon” de Akira Lurosawa (1950)

De Akira Kurosawa são sobretudo famosos pelo menos junto de um publico e dos ecos, os seus monumentais épicos, por exemplo “Os Sete Samurais”, 1954 ou “Ran”, 1985, especialmente nos últimos tempos em que se têm evocado o nome do mestre e por arrasto estes épicos para justificar e comparar as batalhas da trilogia de “O Senhor dos Anéis”.
Kurosawa sempre foi também reverenciado por muitos dos “movie-brats” dos 70´s, de Lucas que é sabido inspirou-se e muito em alguns dos elementos mais “fantásticos” dos seus filmes para construir o seu universo e a “space opera” de “A Guerra das estrelas”, Spielberg que sempre o assumiu como uma das influencias máximas, tendo inclusive ajudado na produção de uma das suas obras finais, “Dreams”, 1990, ou mesmo a sua evocação por Leone nos seus geniais “Westerns “ ou mesmo “ Os Sete Samurais” convertido em “Os Sete Magníficos” por John Sturges em 1960… enfim gerações de cinéfilos admiradores e devedores da sua obra…

Mas depois existem filmes mais pequenos em escala, nunca por nunca menores, mais íntimos se quisermos, onde o realizador desenha com um rigor impressionante a sua percepção sobre a natureza dos homens e dos seus feitos, analisemos “Rashomon” de 1950.

Tudo começa num templo, no século X, no Japão, vemos a placa e o nome deste, uma série de imagens características do templo, música tradicional, misteriosa, depois o silêncio tudo envolto em chuva…sempre a chuva, e com isto somos rapidamente introduzidos no universo lancinante e poético de Kurosawa.

Logo depois entramos no templo, dois homens, um lenhador e um bonzo, ambos discutem o mal dos tempos e dos homens, um deles começa: “Não entendo... Simplesmente não entendo”, continua: “Não entendo em absoluto” e ainda: “Simplesmente não entendo” a reacção do outro é de espanto perante a perplexidade deste, pouco depois atira sublinha: “Nunca ouvi uma história tão estranha”…e com isto está dado o mote rumo ao questionamento dos homens e das verdades.

A História contada pelo homem: Um Samurai e a sua mulher passavam tranquilamente numa floresta, são atacados por um bandido, o homem surge morto.
Uma série de questões são postas durante o processo que vemos em flashbacks: O assassino terá violado a mulher? A esposa terá consentido? O marido acobardou-se? Fugiu e Suicidou-se?

Cada um dos protagonistas vai ter uma resposta diferente, isto literalmente, pois até o homem morto vai ter oportunidade de expor o seu ponto de vista através de uma feiticeira, num momento de puro êxtase emocional.

Três pontos de vista portanto, a mulher, o homem morto e o assassino? Errado, o lenhador que está presente no templo também presenciou a tudo escondido na floresta.
Entramos então num dispositivo de avanços e recuos em direcção aquilo que mais tarde nos damos conta e nos consciencializamos: uma quimera.
Uma quimera porque depois de expostas as “verdades” de cada um dos envolvidos, temos quatro verdades possíveis, o que estilhaça qualquer noção de ordem ou de fidelidade relacional, entre o homem e a mulher, por exemplo, da parte do lenhador, supostamente integro.

No final a adopção de um bebé por parte do lenhador fica como um raio de esperança? …uma redenção? …é ambíguo, sobretudo ambíguo, e o espectador impotente perante o dilema recebe como que um choque de consciencialização.

E o filme é absolutamente magnífico, desde as cenas da floresta em que somos embalados por uma partitura em estado de graça, passando pela poesia dos rostos, dos corpos e dos espaços e pela absoluta geometria dos enquadramentos do Mestre – sente-se que poucos realizadores terão trabalhado assim maniacamente e elegantemente o culto do enquadramento – somos literalmente esmagados pela elevação superior do todo.

Quanto ao mecanismo, que aqui é tão anti mecânico sobretudo pela fluidez imprimida, remete claramente para as variações feitas por Tarantino em “Jackie Brown” ou para os célebres episódios da série de Hitchcock mas obviamente o filme é anterior e então ficamos pasmados a assistir a algo tão brutal de todos os pontos de vista, a algo tão belo e perfeito.

JOSÉ OLIVEIRA

Título em Português: "Rashomon, às portas do inferno"