"98 Octanas" de Fernando Lopes
"O Moderno e o Arcaico" por José Miguel Oliveira
Assistimos a 98 octanas – titulo tão dispersivo como sugestivo – e deparamo-nos com o paradoxo mais fascinante com que alguns dos grandes mestres do passado e do presente souberam lidar com inigualável mestria, a saber: a coexistência dentro de um todo filmico de algo que poderemos considerar eminentemente contemporâneo ao mesmo tempo que sentimos estar presente uma maneira de fazer inegavelmente clássica, “desusada”, anacrónica mesmo.
No ultimo Fernando Lopes a forma vem dos grandes clássicos, de Nicholas Ray por exemplo, mas claro passam por lá como fantasmas Antonioni ou Bergman e sempre o espírito rebelde e libertário da Nouvelle Vague francesa – "je m´apelle Ferdinand" dizia Belmondo a Anna Karina no “Pierrot Le Fou” de Godard, entre Rogério Samora e Carla Chambrel haverão tiradas idênticas.
E estas evidências aparentemente antagónicas não estão de modo algum separadas, não caminham num paralelo distanciado, antes cruzam-se, atropelam-se, sobrepõem-se uma á outra, como secantes que se atraem e repelam…
É o que mais impressiona por exemplo em Clint Eastwood nos últimos filmes – e não só, poderemos dizer – em que o seu classicismo “Fordiano” é rasgado por temáticas urgentes e claro contemporâneas.
O Velho e o novo, Samora e Chambrel, a forma e os temas, a conformação e a rebeldia.
Se a personagem de Samora – o “velho” – se encontra resignado pelo novo, pelo contemporâneo, espécie de alienação nascente precisamente deste nosso “novo mundo”, perdido nos novos mapas das relações e da vivência moderna, á deriva num espaço e num tempo que parece fugir-lhe e esmaga-lo, sentem-se laivos niilistas, já a personagem de Chambrel – “a nova” – é ao mesmo tempo tocada pela rebeldia da juventude, pela fome de viver, mas esconde em si um espectro de medo enraizado num passado…e por vezes estes contrários vão ser ambíguos, de fronteiras difíceis, impossíveis de delimitar e de reconhecer.
E é ora pelas estradas, pelas estações de serviço e hotéis, pelas zonas em que o tal “trânsito moderno” se desloca alucinantemente, ora pelos interiores desertos onde a população já passou que o par em fuga vai querer que algo aconteça – qualquer coisa aconteça, apetece dizer.
São todos estes movimentos – geográficos e humanos – e pulsões que fazem o filme vibrar, que o carregam de vida e de sinais proximamente assustadores.
E todo o artificial que o filme produz, a luz divina, os cenários estáticos, como nos clássicos, mesmo a dimensão policial incutida pela perseguição, tudo vai no sentido de melhor convocar o deslocamento das personagens.
E é evidente que Fernando Lopes não realiza contra os novos riquismos cinematográficos ou televisivos, não vai contra a América nem contra o dinheiro, o filme contem esta forma e este ritmo – que o lugar comum dirá lento e cansativo, mas que sem duvida caminha á velocidade da luz tal o afloramento dos sentimentos – porque só pode ser mesmo assim para o realizador, a sua visão é tão definitivamente autoral e que só a ele lhe diz respeito o trabalho sobre as matérias em questão.
Isto é evidente na cena em que Lopes aparece na pele de um falsário desconfiado e comoventemente pacificado, com a clarividência e lucidez de um “velho”, precisamente, que já nada tem a justificar ou a temer, que aceitou o seu ser, o seu cinema fluí com aquela pureza luminosa e crepuscular que só depois de muita pedra partida é possível atingir – e vem-nos ai á cabeça Eastwood mais uma vez, mas também João César Monteiro seu velho comparsa, sem duvida.
“Lá Fora” foi o filme anterior de Fernando Lopes. Neste 98 octanas já estamos quase sempre lá fora e os dois filmes funcionam como as duas faces de um mesmo tempo. Em “Lá Fora” estávamos cercados pela imponência do betão e das câmaras de vigilância, em 98 octanas já estamos a céu aberto, mas a densidade e o ar deste tempo continuam carregados e a assombrar irremediavelmente as relações.
O desespero e o pessimismo de Antonioni, o arrebatamento lírico de Nicholas Ray, mas o filme nunca se reduz a mero gesto cinéfilo ou a citação inconsequente, a liberdade e abstracção do argumento de João Lopes e de Fernando Lopes tratam de elevar o percurso a algo de essencial e necessário, espécie de roteiro pelas flutuações interiores – a viagem valeu a pena.
Têm-se dito, com a altivez de quem tudo quer saber, que o filme é completamente fechado em si mesmo, auto-indulgência artística de quem se toma por artista – mas é o filme mais livre e aberto do mundo, não vende nada a ninguém, nada impinge a ninguém e cada um compra o que quiser.
Que o filme pareça ir a lado nenhum e a todo o lado ao mesmo tempo poderá ser o mais imediato paradoxo a que a “demarche” se propõe e que o dialogo final poderá explicitar, mas no fluxo acelerado e calmo de todo o filme não será seguro termos alguma certeza.
O amor ainda pode acontecer a estes ritmos? Perguntaria o realizador, o filme não se atreverá a responder. Que alternativa? Ficarmos com estas sensações e com estas imagens que são magníficas.
por: José Miguel Oliveira
11 Comments:
Discordo, achei que era uma viagem aborrecida, pouco surpreendente e francamente desapontante. Dispensável, não é de filmes destes que o nosso cinema precisa.
Discorda?... mas ainda bem...senão era realmente uma chatice!
Mas já agora, e só por mera curiosidade, do que é que precisa o cinema português?
- Será da veia copista/medíocre policial Hollywoodiano "a lá" Leonel vieira (essa sim, feita para o grande publico, e mais nada)?
Ou
- Pior ainda: "filme televisivo", multi plataforma, pós-Joaquim Leitão, pensado pare ser esticado ou cortado conforme a ferocidade mercantilista ?
Ou
- Há ainda uma hipótese sempre válida: o cinema guerrilheiro, pós-Tarantino, pós-Rodriguez, mas de aplicação lamentável e evidentemente irrisória: a geração Fragata, passível de emulações várias pelas escolas de cinema deste nosso país, ou seja: uma câmara digital caseira, um Premiere e: temos cinema?
Ou ainda apreciarmos os grandes autores louvados em França ou no Japão, como Oliveira ou Costa (aqui estaria do seu lado)
Ou?
Cumprimentos
(e não se ofenda com o lado leviano da coisa!)
José Miguel Oliveira
só um acrescento: na 2º hipótese refiro-me obviamente ao Crime do Padre Amaro
J.M.O
olho para o 98 octanas e vejo um classico. não vejo aborrecimento só porque as imagens não voam a velocidade da luz para um publico esperançoso por um videoclip gigante da mtv. Este é o cinema portugues. SE há filmes que o nosso cinema não precisa nao é destes de certeza. Por mim prefiro ver 100 vezes 98 octanas a ver o crime do padre amaro, sorte nula, ou tiro no escuro etc... ao menos não fere a minha dignidade nem a minha inteligencia
Talvez precisemos, pura e simplesmente, de mais filmes. Creio que, sendo maior a oferta, os realizadores acabarão por evoluir naturalmente.
O grande problema é, acho, a subsidio-dependência. Talvez não fosse má ideia alguns autores lusos porem os olhos em Fassbinder: depois de o recusarem coo aluno numa escola de cinema, enfureceu-se e desatou a fazer filmes. O resultado está à vista. Outro exemplo semelhante: Jean-Pierre Melville.
Falta uma cultura, e perdoe-se o estrangeirismo, maverick.
Quanto a este 98 octanas, confesso que não figura no meu rol de preferidos de Fernando Lopes (é o problema de Belarmino, uma abelha na chuva ou o delfim, terem colocado a exigência sobre o autor em níveis muito altos). E sim, mil vezes uma obra menos inspirada de Fernando Lopes do que atavios como o crime do padre amaro, a bomba, sorte nula ou a selva (filme que é uma oportunidade perdida, pois a obra de Ferreira de Castro presta-se a dar grandes filmes. Um exemplo: "os emigrantes")
Concordo plenamente, sim falta realmente mais filmes, sim era necessário que houvesse uma maior vontade de arriscar.
A coisa do subsídio é realmente das coisas mais injustas e ingratas que o cinema português enfrenta, falta fundos privados, falta o que faltar mas este sistema está podre e já cheira mal.
O termo “maverick” é bem lembrado, os seus exemplos são proveitosos. Mas pensemos porque não no cinema novo brasileiro, em Glauber ou em Nelson Pereira, a “estética da fome”, etc.
Em Herzog que roubou uma câmara, tal a necessidade de se expressar.
Pensemos nos grandes rebeldes da série b americana e seus derivados, pensemos em Edgar G.Ulmer ou em Joseph H Lewis, em Fuller em Siegel, em Corman, homens que se opuseram ao dinheiro e fizeram obras primas com meia dúzia de “tustos”
Pensemos em termos de presente na 6º geração do cinema chinês liderada por Zhang Ke Jia ou Zhang Yang, que se opuseram aos épicos endinheirados de Zhang Yimou por exemplo, saíram para a rua, muitos deles com as câmaras digitais leves, qual Nouvelle Vague.
Sim, com todo esta revolução do digital basta pensarmos em Pedro Costa e na sua maneira de trabalhar, não é preciso um orçamento milionário… e os exemplos multiplicam-se: Sokourov, Von Trier, Eric Khoo, o japonês Suwa, Takashi Miike etc…homens que vão fazendo o seu cinema pessoal e intransmissível sem qualquer tipo de interferência, de uma ponta á outra do globo… é também isto que falta: capacidade de risco! Sair para a rua, armado com um conhecimento e uma paixão, o contrário da mediocridade, pois claro!
E sim talvez falte uma indústria capaz de nos dar “peças de fabrico” (as aspas faz todo o sentido) de qualidade que possam suportar filmes mais pessoais, olhemos para Hong Kong, onde as peças de fabrico podem ser executadas por alguém como: Wai Keung Lau e Siu Fai Mak, Johnny To, etc. e serem coisas fabulosas, para depois estes mesmos nomes fazerem outros filmes mais pequenos e pessoais, e para outros tais continuarem o seu percurso com filmes mais pequenos.
Ou no Japão onde temos Nobuhiro Suwa com um cinema de autor nos antípodas de outro autor como Kiyoshi Kurosawa.
Relações simbióticas, é nisso que estou a pensar.
Mas depois existem as escolas de cinema que desencorajam constantemente os alunos, dizendo que fazer cinema é a coisa mais difícil do mundo, etc.
Esta sim é das grandes mentiras da arte, do mundo.
Cumprimentos e obrigado.
José Miguel Oliveira
Essa história do Herzog é hilariante. E pensar que esse furto de uso (em sentido quási-técnico) serviu para fazer o magnífico Aguirre...
Mais uma achega - desta feita algo saudosista. Talvez falte, também, uma revista de cinema com críticos jovens e empreendedores. Começo a achar que o célebre artigo de Truffaut sobre as tendÊncias do cinema francês seria aplicável, hoje, ao cinema português. Ou seja, acho que talvez faltem uns turcos cá em Portugal. Falta uma cultura cinéfila. bats ver que, apesar do rejuvenescimento do público, boa parte dos espectadores da Cinemateca não são propriamente jovens. E eis outra para reflectir: talvez a própria Cinemateca deve-se promover uma cultura de diálogo e de mesas redondas como faz a sua congénere francesa. E, já agora, talvez pudesse expandir-se para outras zonas do país. Mas Portugal é Lisboa e o resto é paisagem, como dizia o Eça.
Mas isso traz-nos outro problema: muitos dos elementos da blogosfera lusa - que, certamente, poderão vir a ser os críticos de amanhã - não têm grandes referências pré-1980. E, sendo o cinema um produto histórico, diria que não auguro grande futuro. Talvez seja eu um pessimista.
Muito bem lembrada a série b americana. E é curioso notar como seria a série B a influenciar mutios dos grandes cineastas do século xx (à bout de souffle de Godard é um dos exemplos mais acabados).
Não podia estar mais de acordo.
Abraço,
PS - felizmente o nosso Pedro Costa já começa a ter o reconhecimento devido lá por fora. Talvez seja a hora de o grande público render-lhe homenagem também. Depois de César Monteiro e de Manoel de Oliveira, Pedro Costa arrisca-se a ser, creio, a grande bandeira do cinema luso.
Hugo Alves, precisamente, não poderia estar mais de acordo!
Partilho esse sentimento nostalgico da Nouvelle Vague, dos fortes debates e partilhas, Godard-Truffaut-Rohmer, etc...
Resta-nos combater o marasmo aqui na blogosfera e continuar com estes debates e trocas de opinoões...
E fazer cada vez mais para que a coisa saia do sitio!
Cumprimentos
José Miguel Oliveira
joseoliveira_braga@hotmail.com
José Miguel Oliveira, acho que os exemplos que enunciou também não contribuem muito para que o nosso cinema melhore (e não, não concordamos quanto ao Pedro Costa). Agora se falarmos de filmes como "Alice", "Odete", "Coisa Ruim" ou "Noite Escura", aí encontro um bom equilíbrio entre valor cinematográfico e viabilidade comercial, que não me fizeram arrepender de ter pago o bilhete (ao contrário do insípido "98 Octanas", que não é pior do que muitos que chegam lá de fora, também é verdade).
Nada a dizer, Viabilidade comercial e valor artístico?!
Essas coisas não compreendo muito bem, prefiro sempre o valor artistico, que foi no que o J.P.Rodrigues pensou de certeza, mas pronto...e o que eu pensei nos exemplos apesar das oposições...
Coisa Ruim?!
J.M.O
Às vezes esta nostalgia faz-me crer que não pertenço a este tempo..
COISA RUIM ??? Arriscando o trocadilho diria que é mesmo ruim, salvo o devido respeito, claro.
hugoaralves@gmail.com
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