“Miami Vice” de Michael Mann (2006)
Para compor um comentário a “Miami Vice” de Michael Mann, há que tocar em alguns pontos cruciais, o contexto histórico em que nasce a série televisiva e em que nasce a adaptação cinematográfica, o contexto cinematográfico e tecnico, e claro tratar-se de Michael Mann o realizador, sendo que estes dois ultimos aspectos estão claramente de mãos dadas.
O risco da adaptação cinematográfica é muitas vezes as redeas presas a um naturalismo frio que por tantas vezes invade o nosso ecran, a linguagem televisiva que cada vez mais domina o panorama do “publico médio”, e tudo o de redutor que essas imagens expressam uma irrisão quando se fala ou tenta alcançar o real, a adaptação cinematográfica “Miami Vice” de Michael Mann caminha no sentido oposto.
Estavamos nos meados dos anos 80, na televisão surgia “Miami Vice”, produzido por Michael Mann, poderiamos dizer que se tratava de o olhar natural sobre uma Miami turistica, o paraíso, onde as festas as mulheres de bikini e o sol invadiam cada segundo da série. Lembro que estavamos em meados dos anos 80, agora na segunda metade da primeira década do século XXI, Michael Mann adapta a série ao cinema, e será adapta a palavra correcta?
De forma alguma; da série ficam apenas os nomes e o conceito de dois polícias a lutarem contra o crime, por que apartir daqui Mann desconstroi, reinventa e experimenta. Experimenta o seu cinema (ou uma nova vaga do cinema em geral) tenta transportar-se para algo mais profundo do que aquilo que vem alcançando e procurando desde “Ali”, já que “Heat-Cidade sobre pressão” deve ser deixado descansado no altar de obras memoraveis dos anos 90, sendo que o cinema de Mann já implode nesse momento. Digo implode porque Mann, qual expressionista filma a sua realidade apartir da sua sensibilidade, parte da sua subjectividade para alcançar uma objectividade extrema. Tudo isto parte do autor e das tecnicas, não será ao acaso o surgimento do vídeo de alta definição (HDV/CAM), tenha impulsionado Mann para um novo patamar, para um novo espaço físico e psicológico, a noite. Em “Ali” já havia feito a pequena experiência de filmar algumas cenas durante a noite, apoiado no Vídeo, em “Colateral” a importância do vídeo é clara, transformando, a cidade de Los Angeles, mais que um mero espaço, num componente dramático. Agora em “Miami Vice” o choque tecnológico é extremo, a tecnica está dominada, podendo ir ainda mais longe no extremismo, mas o essencial está conseguido, desconstruir a “Miami Vice” turistica e luminosa da série de TV, transformando-a numa realidade obscura, suja e seca, que não será nada mais a realidade retratada dos Estados Unidos aos olhos e ao cuidado da novas convicções sensiveis que Mann trouxe ao cinema.
Será fácil colocar a sensibilidade dramática de Mann em causa especialmente neste “Miami Vice”. No cinema actual ainda vivemos agarrados a formas e convicções existentes há mais de 40 anos e poucos são aqueles que agarram com mão dura nas convicções clássicas do cinema e as reinventam, as tentar contornar e modelar de forma correcta, sendo que para isso tenham de as conhecer ao detalhe. Pergunto, alguém faz filmes de acção (drama) como Michael Mann? Porque não filma como Michael Bay? Mann tem a sua formação na Europa rodeado por cinema europeu, e filma na América, como nenhum Americano pode filmar, tem no seu olhar rude e seco sobre uma sociedade, tem uma abordagem tecnica crua e energica, qual Novelle Vagueano e não filma nada mais que a objectividade do real, sempre aliado ao lirismo, qual neo-realista.
“Miami Vice” é o caso extremo da sua filmografia, utilizando a tecnologia de topo da Viper FilmStream™ (http://www.thomsongrassvalley.com/products/cameras/viper/) , Mann explora, formas, movimentos, ritmos e dramáticos. Colocar em causa o argumento de “Miami Vice”, pode ser um erro, é certo que o argumento não vive por si só, mas vive antes de todo o conteudo formal que o envolve e que Mann tão bem explora, mas o que é mais que certo é que o argumento é o necessário para consolidar as duas personagens principais, sendo toda a envolvencia tecnica que acrescenta o que supostamente falta em palavras no argumento.
Repare-se que a noite desde “Colateral” ganha uma nova importância e uma nova expressão. Lembram-se da série televisiva? O sol de Miami, os sorrisos dos dois protagonistas, os fatos brancos, os corpos em bikini? Na Miami Vice de Mann tudo desaparece, a noite dura e crua, o olhar massacrado dos protagonistas, os corpos vestidos de escuro, Miami é agora uma cidade sombria, uma cidade fantasma, que tal como acontece na América geral o choque cultural é o motivo para o conflito.
Outra questão, existe realmente Miami? Miami é o ponto de partida e o ponto de chegada de uma viagem que atravessa América do norte, América do sul e Central.
O que sobra da série televisiva? Nem o genérico, Miami Vice está mais cruel que nunca... ou será real?
Detective James 'Sonny' Crockett e Detective Ricardo Tubbs, Collin Farrel e Jamie Foxx, substituem Don Johnson e Philip Michael Thomas, e em boa verdade esqueçam Johnson e Thomas, pois Farrel é impressionante na sua presença corporal e vocal, com um olhar pesado e um estilo incomparável e Jamie Foxx no papel de “Rico”, se quisermos, aquele que na série de televisão era o mais contido emocionalmente e divertido no seu dia a dia, é agora para Foxx um homem duro, integro e extremamente agressivo... o que mudou? Mudou a América, mudou o mundo.
Mas o que ressalta de toda esta Miami é mesmo Michael Mann, podem-no acusar de ter feito um mero exercício de estilo, podem dizer que esqueceu o conteudo, mas não será parte do seu estilo parte do conteudo que falta? Ouvi recentemente na televisão o Sr. Mário Augusto (SIC), dizer que Mann utilizou câmara ao ombro, que é uma tecnica muito proxima da televisão... mas porque temos de ouvir tamanha barbaridade? A câmara de Mann é a rudeza que faltam as palavras é o escurecer de um olhar, é o “fuck you all” que não ouvimos, lembrem-se de como Mann filma as cenas de amor, ou como filma a personagem “Rico” quando este prepara um dos salvamentos mais importantes da sua vida, para quê as palavras, se se domina uma tecnica que poucos dominam, pelo menos da forma e com o objectivo que Mann quer. Michael Mann caminha a passos largos do realismo extremo, seja na sua imagem e componente plástica, seja no excelente trabalho de som, que no final do filme é absolutamente cruel, assim como toda a imagem, é a conjugação sublime.
Querem filmes bonitos, querem regras, querem choro e palavrinhas mansas, querem movimentos de câmara suaves? Então esqueçam, “Miami Vice” é o maior passo de Mann em direcção ao “seu” realismo, à sua abstracção objectiva e de bonito tem muito pouco... mas em boa verdade, é Mann um autor ou não? É isto que faz do cinema algo tão especial ou não? Quero lá saber dos sentimentos que estão no papel do argumento, quero é ver essas emoções na tela....
“Miami Vice” é incomparável com qualquer outro objecto, nem que seja pelo simples facto de dar um importante passo em direcção ao cinema digital que tem neste proximo ano um momento decisivo, e não é por ser mais “fácil”, ou mais “barato”, ou mais criativo como por aí se diz... é por ser diferente.
Tal como as taglines dos posters do filme, “Miami Vice” é um objecto sem regras nem leis.
NeTo - 10/10
P.S. - Ana Cristina Oliveira tem uma pequena participação no filme, onde no inicio dialoga com Colin Farrel, onde se apresenta como sendo de Lisboa, Portugal. Curiosidade será o facto da actriz actualmente fazer parte do elenco de dois filmes em exibição nos EUA, "Miami Vice" e "Two Drifters - ODETE".